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Liberdade de expressão e limites do humor: Análise jurídica da condenação do humorista Léo Lins

  • Foto do escritor: Lucas Agassi de Souza
    Lucas Agassi de Souza
  • 7 de ago.
  • 7 min de leitura
advogado

Tópicos:


A liberdade como direito fundamental e seus limites jurídicos 

 

A liberdade de expressão é, inegavelmente, um dos alicerces das democracias constitucionais contemporâneas. Prevista no artigo 5º, inciso IX, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, essa garantia assegura a livre manifestação do pensamento, da criação intelectual e artística, sendo indispensável para o pluralismo democrático, a crítica ao poder e a circulação de ideias. Contudo, como ensina Alexandre de Moraes, “a liberdade de expressão não pode ser interpretada como escudo para discursos que neguem os próprios fundamentos da ordem constitucional”. 

 

Nesse contexto, o debate sobre os limites do humor, especialmente quando dirigido a grupos vulneráveis, ganha relevo. O caso do humorista Léo Lins, condenado pela Justiça Federal a oito anos e três meses de prisão, além do pagamento de multa e indenização por danos morais coletivos, ilustra de maneira paradigmática os choques e tensões entre liberdade de expressão e proteção à dignidade humana. 

 

Este artigo propõe-se a analisar, sob a ótica constitucional, civil e penal, os fundamentos da responsabilização do humorista, refletindo sobre os limites jurídicos da liberdade artística e os contornos do chamado “racismo recreativo”. 

 

O que aconteceu? 

 

Em junho de 2025, o humorista Léo Lins foi condenado pela Justiça Federal da 3ª Vara Criminal de São Paulo a 8 anos e 3 meses de reclusão, em regime inicialmente fechado, além do pagamento de multa de 1.170 salários mínimos e indenização por danos morais coletivos no valor de R$ 303,6 mil. A sentença decorre de piadas proferidas durante seu show de stand-up "Perturbador", gravado em 2022 e amplamente divulgado nas redes sociais, que, segundo a magistrada, promoveram discursos de cunho preconceituoso contra negros, pessoas com deficiência, homossexuais, nordestinos, indígenas, judeus, evangélicos e outros grupos historicamente vulnerabilizados. 

 

A juíza fundamentou a condenação em dispositivos da Lei nº 7.716/1989, que tipifica crimes de racismo e discriminação; da Lei nº 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência); e da Lei nº 14.532/2023, que passou a considerar crime manifestações preconceituosas disfarçadas de humor o chamado "racismo recreativo". A sentença também destacou que o réu admitiu, em trecho do show, o caráter discriminatório de suas falas, o que, segundo o juízo, configura o dolo necessário para a responsabilização penal. A defesa do humorista alega ausência de intenção ofensiva, invocando a liberdade artística, e recorre da decisão. 

 

Responsabilidade civil por discurso ofensivo: O alcance do Código Civil Brasileiro 

 

A base para responsabilização civil por manifestações artísticas ofensivas encontra-se nos artigos 186 e 927 do Código Civil. De acordo com o primeiro, “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. Já o artigo 927 determina que “aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”. 

Esses dispositivos impõem uma clara obrigação de reparar o dano quando se extrapolam os limites da legalidade, ainda que sob a forma de manifestação artística. A doutrina de Carlos Roberto Gonçalves é firme ao reconhecer que o dano moral coletivo ocorre quando há ofensa a direitos difusos ou coletivos, atingindo valores sociais protegidos pela ordem jurídica. 


No caso de Léo Lins, as piadas foram dirigidas a minorias étnicas, religiosas, sexuais e pessoas com deficiência. A fundamentação da sentença baseou-se no entendimento de que o conteúdo das falas não se limitava à crítica social, mas sim à reprodução de estereótipos depreciativos e desumanizantes, com potencial de causar lesão coletiva à dignidade desses grupos. 


Além disso, o art. 20 do Código Civil dispõe que “salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade”. Ainda que não haja individualização nominal, a ofensa dirigida a categorias inteiras como negros, judeus ou pessoas com deficiência é suficiente para configurar violação à honra coletiva. 

 

A dignidade da pessoa humana como parâmetro de controle da liberdade de expressão 

 

A dignidade da pessoa humana, prevista no art. 1º, inciso III, da Constituição Federal, constitui um dos fundamentos da República Federativa do Brasil e, por consequência, serve como vetor interpretativo de todo o ordenamento jurídico. Esse princípio, conforme leciona Ingo Wolfgang Sarlet, traduz-se na necessidade de reconhecimento do indivíduo como um fim em si mesmo, dotado de valor intrínseco, inviolável. 

 

O artigo 5º, inciso X, também reforça essa tutela ao garantir a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas. Nesse sentido, o STF já decidiu que a liberdade de expressão deve ser exercida em consonância com os demais direitos fundamentais (ADI 4815, Rel. Min. Luiz Fux). 

 

No julgamento do humorista, a magistrada entendeu que houve extrapolação da liberdade de expressão ao se promover, sistematicamente, o discurso depreciativo de grupos vulneráveis, em contexto planejado, editado, monetizado e publicamente divulgado. Assim, afastou-se a mera opinião ou crítica e confirmou-se a ocorrência de ato ilícito com dolo eventual ou direto. 

 

A sentença ilustra a concepção segundo a qual a liberdade de expressão não é absoluta e deve ser ponderada com outros valores constitucionais em especial, a dignidade da pessoa humana, a igualdade e a não discriminação. 

 

Racismo Recreativo e o Marco Legal da Responsabilização Penal 

 

A responsabilização penal de Léo Lins teve como suporte normativo três diplomas legais: 


  • Lei nº 7.716/1989, que define os crimes resultantes de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional; 

  • Lei nº 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência), que criminaliza condutas discriminatórias contra pessoas com deficiência; 

  • Lei nº 14.532/2023, que alterou a Lei de Racismo para incluir o conceito de “racismo recreativo”. 

 

Este último diploma foi essencial para a tipificação das condutas do humorista. A lei passou a considerar crime o uso de manifestações culturais, artísticas ou humorísticas que, ainda que disfarçadas de piada, perpetuem estigmas e inferiorizem determinados grupos sociais. Como bem analisa a sentença, não se trata apenas de proteger sentimentos subjetivos, mas sim de coibir práticas discursivas que atuam como instrumentos de exclusão estrutural. 

 

Na sentença, a juíza ressaltou que o dolo restou configurado por declarações explícitas do próprio acusado durante o show, como o trecho: “essa piada pode parecer um pouco preconceituosa. Porque é.” Tal confissão, aliada à reiterada veiculação de conteúdo com escárnio sobre minorias, demonstrou a intencionalidade das ofensas, afastando a tese da mera liberdade criativa. 

 

A divergência na doutrina: Intenção, Ficção e o Limite do Artístico 

 

A decisão judicial, no entanto, não foi unanimemente bem-recebida no meio jurídico. Advogados como André Marsiglia, especializado em liberdade de expressão, argumentaram que a condenação criminal fere o princípio da legalidade penal estrita, uma vez que a legislação pune o dolo e não o mero conteúdo potencialmente ofensivo. 

 

Segundo essa corrente, o humor opera em contexto ficcional, e não se pode presumir que haja intenção de ofender quando o intuito é provocar reflexão ou riso. No entanto, como rebateu a juíza Barbara Iseppi, o contexto probatório apontou para a utilização sistemática do humor como meio de reforço de desigualdades e não como crítica social ou ironia artística. 

O debate, portanto, não é sobre censura, mas sobre responsabilização. A liberdade de expressão, como bem destacou o STF, não pode ser confundida com a liberdade de agressão (ADPF 130/DF). 

 

Conclusão:


Liberdade de expressão e a responsabilização jurídica sob perspectiva plural 


A condenação do humorista Léo Lins pela Justiça Federal insere-se em um contexto mais amplo de redefinição dos limites jurídicos da liberdade de expressão, especialmente no que tange à manifestação artística e ao discurso humorístico. O caso tem provocado intenso debate entre juristas, professores de Direito, advogados e operadores do sistema de justiça sobre até que ponto o direito à livre manifestação pode ser exercido sem responsabilização jurídica e quais são os parâmetros normativos para essa avaliação. 

 

De um lado, parte da doutrina defende que a responsabilização penal e civil por piadas consideradas discriminatórias representa uma forma legítima de proteção da dignidade das minorias e de repressão ao discurso de ódio. Essa corrente sustenta que, nos termos da Constituição e da legislação infraconstitucional (Leis nº 7.716/1989, nº 13.146/2015 e nº 14.532/2023), a liberdade de expressão encontra limites objetivos no ordenamento, não podendo ser utilizada como escudo para a perpetuação de estigmas e preconceitos estruturais. 

 

De outro lado, há juristas que alertam para o risco de decisões judiciais excessivamente restritivas sobre manifestações artísticas resultarem em censura indireta e produzirem um efeito inibidor (chilling effect) sobre a liberdade criativa. Essa visão defende uma leitura estrita do dolo nas infrações penais e uma análise contextual mais cuidadosa sobre a intencionalidade humorística, diferenciando ficção de ataque real. 

 

Do ponto de vista institucional, o caso marca uma inflexão interpretativa relevante no âmbito do Poder Judiciário, ao aplicar com maior rigor dispositivos voltados ao combate do chamado racismo recreativo e à proteção da dignidade coletiva. Tal abordagem já tem refletido em novas demandas judiciais, projetos legislativos e na intensificação da atuação de órgãos de fiscalização e de promoção de direitos, como o Ministério Público. 

 

Assim, o caso Léo Lins representa, mais do que um julgamento individual, um campo de tensionamento entre valores constitucionais igualmente relevantes: liberdade de expressão e proteção à dignidade humana. A forma como o Direito brasileiro evoluirá a partir dessa decisão seja por confirmação jurisprudencial, seja por revisão doutrinária ou reinterpretação legislativa será determinante para moldar os contornos futuros da liberdade artística em um Estado Democrático de Direito. 



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